O Homem que Esqueceu de Morrer

O HOMEM QUE ESQUECEU DE MORRER

            Morto e esquecido jazia João. Familiares próximos não possuía e amigos sequer de alguma valia. Na pequena funerária em que se encontrava, a única que seu seguro bancava, apenas um senhor careca lhe acompanhava tirando um cochilo e outro entre o dedilhar do jornal de ontem que folheava.
            De repente, levantou-se João de seu caixão:
            - Já é quase meio dia!
            E o homem que lhe acompanhava, ele não percebia, enfartava e morria.
            João sai pelas ruas perambulando sem saber onde estava até se localizar, então se dirige ao prédio onde trabalhava. Ao subir o elevador e adentrar seu escritório a confusão, o pânico e o medo tomam conta do auditório. Folhas a voar para todos os lados; gente a correr, a pular, a gritar, sem saber o que fazer. Pedro atira-se pela janela, que blindada atira-o de volta ao chão, Maria vai ao banheiro e estranhamente enfia a cabeça no vaso tentando esconder-se na tubulação.
            João alheio a tudo, conhecido desatento, senta-se em frente ao computador, seu trabalho não estava a contento. Seu chefe logo chegaria e uma bronca com certeza lhe daria. Com isso o clima no salão aos poucos se amansou, e o chefe de João entra na sala vociferando com imensa razão:
            - João, onde está o relatório? Tive que me virar com a diretoria! Quero-o pronto antes do meio-dia!
            - Hã?
            - Pois tire esses chumaços de algodão de seus ouvidos, não quero mais saber de discussão, quero esse relatório pronto em minha mão.
            E João passou a escrever pois não tinha mais tempo a perder.
            Pedro, que havia sido pela janela rejeitado, em sua direção vem mancando meio desajeitado:
            - João, o que está acontecendo?
            - Desculpe-me o atraso, eu não sei o que estava fazendo.
            - Você não morreu, ó criatura?
            - Mas quem lhe contou tamanha desventura?
            - Rapaz, acho que estás precisando de um médico.
            - Médico! – Exclama João – esqueci completamente. Estou saindo, o relatório está pronto, alguém entregue ao gerente.
            E ao fundo uma voz não identificável sussurra de fininho:
            - E morto lá precisa de médico?
            - Vai ver esqueceu a necropsia – responde outro de mansinho.
            Todos caem a rir, e João parte em seu caminho.
            Chegando ao consultório João é atendido pela recepcionista:
            - O médico está atrasado, dois ou três estão na sua frente aqui na minha lista, aguarde aqui sentado, a televisão está à vista.
            João então sentou, mas nada lhe agradava, seja na televisão ou na velha revista.
            Chegando a hora de ser atendido João chegou ao consultório. Cumprimentou o médico que logo retirou sua mão assustado:
            - João, que mãos frias são essas?
            - Sabe como é doutor, esse tempo louco e transitório.
            - Sabias que correu uma notícia de que estavas morto?
            - Pois se demorasse mais um pouco na sala de espera morreria, de tédio ou desgosto.
            - O que dissestes João?
            - Nada não, é bom revê-lo, sigamos com a consulta então.
            João desabotoou a sua blusa e logo percebeu seu corpo pálido e esquálido, repleto de hematomas, perfurado, machucado. Tudo isso contrastando com a perfeita maquiagem de sua mão e de seu rosto que na funerária lhe prepararam com tanto gosto.
            Só de olhar o médico se desespera:
            - Isso são sinais de reanimação João! Eras para estar em uma UTI e não aqui. Não te lembras de nada que aconteceu?
            - Nada desde que fui dormir até que amanheceu.
            O médico examinou João e boa notícia não havia de ter:
            - João, disseste-me que eras uma pessoa esquecida.
            - Sim doutor, e o que tem a ver?
            - Pois é a primeira pessoa que vejo que esqueceu de morrer.
            - É alguma brincadeira?
            - Não, pois falo sério. Sente-se naquela cadeira e deixe-me fazer mais um exame.
            João sentou-se e apoiou seu braço. O doutor então preparou-se para medir sua pressão, mas paf! Do cotovelo desprendeu-se seu antebraço.
            - Doutor, eu vou morrer! – Esbraveja João.
            - Mas você já está morto criatura!
            - E o que eu faço agora?
            - Saindo do consultório à esquerda há uma segunda recepção, em seu caso acho que basta uma sutura.
            Chegando à segunda recepção outra má notícia o espera:
            - São seiscentos e cinquenta reais senhor. Trezentos da consulta e trezentos e cinquenta da sutura.
            - Mas plano de saúde eu tenho minha senhora, e cobre tudo isso com certeza.
            - Mas uma resposta recebemos senhor, eles não têm cobertura para mortos, e isso disseram com clareza.
            - E seu eu não tiver dinheiro para pagar?
            - Aí na fila do sistema público posso tentar lhe encaixar.
            - Pois tente, por favor, senão meu bolso sairá ferido também.
            - A próxima vaga é para março.
            - Mas estamos em julho.
            -Exatamente, março do ano que vem.
            João então pagou a consulta e já com o braço costurado pegou um ônibus para casa, não queria mais ser humilhado, mas eis que o impensado aconteceu, o ônibus foi parado e um assalto ocorreu. Um passageiro tentou reagir e foram ouvidos três estampidos, dois corpos caíram atingidos, o terceiro acertou João na testa, que apesar do buraco mal esboçou uma reação. Pelo menos serviu para os assaltantes fugirem com medo em seu olhar:
            - É um zumbi! Corre que aqui não vou ficar.
            João seguiu a pé para casa, já não aguentava mais andar, deitou-se em sua cama e a televisão tentou ligar, queria um pouco se distrair e um programa qualquer assistir. A TV não funcionava, pegou seu telefone para ligar para a operadora, mas o que ouviu foi uma mensagem desesperadora:
            - Seu saldo é insuficiente para completar essa ligação.
            Pegou então seu telefone de cabeceira e estranhou que estava caído ao chão. Ligou para sua operadora de TV e aos poucos viu sua memória reaparecer. Na noite anterior tentou assistir algo, mas apenas uma tela azul se apresentava, ligou de seu celular, mas crédito não tinha, ligou de seu telefone de cabeceira e então uma dor lancinante seu corpo ardia, acabou por ligar para a emergência e dali em diante de nada mais lembrou.
            Então de sua cama se levantou e largou seu telefone abandonando a melodia pobre e desafinada de Pour Elize vez ou outra interrompida por uma voz robótica que insistia:
            - Sua ligação é muito importante para nós, no momento todos os nossos colaboradores estão ocupados, mas aguarde na linha que já iremos atende-lo.
            E a vaguear pela cidade viu bêbados a vomitar e tombar, sem rumo, sem destino ou alguém a lhes ajudar; também aqueles que um teto não tinham e mais uma noite na calçada passariam com a fome a devorar seus âmagos, estimas e pensamentos, não só adultos como crianças, criando sabe-se lá que futuros, que tormentos.
            Entre becos, ruas e esquinas deparou-se de forma quase poética com a funerária que o abrigava nessa manhã, ainda aberta, iluminada, patética.
            Com seu velho companheiro caído ainda morto João aconchega-se em seu caixão. Então, em um raro momento de silêncio e monotonia, em seu caixão João relaxa e recorda tudo o que passou naquele dia.
            Fechou a tampa.




Copyright © 2015. Rodrigo Chedid Nogared Rossi
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